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Deus e o planeamento familiar

por Teresa Mendonça, em 17.10.14

Depois de me dar conta da cavalgada retórica e espiritual a que se assistiu neste blogue no dia de ontem, não podia deixar de vir aqui dar a minha opinião como segunda metade do casal cuja compostura sacramental foi posta em causa. Antes de mais, deixem-me dizer-vos que tenho pena de não ter pedalada para acompanhar o decorrer das discussões interessantes que se geram neste blogue. Imagino até que por vezes pareça leviano deixar de o fazer. Mas a minha vida profissional não me permite andar a tratar da vida das pessoas com os neurónios cansados por noitadas ao computador, descontando as que por obrigações familiares e profissionais me são impostas.

 

Contudo, tenho algumas coisas a dizer. Comecemos pelos métodos anticonceptivos naturais, que foram aqui ridicularizados e elogiados. Factos são factos, e nem sempre o que anda na boca de toda a gente é verdade. Há vários métodos chamados naturais, com eficácias muito diferentes. O método da ovulação Billings (lamento contrariar a maioria das pessoas) é tão eficaz na prevenção de uma gravidez como a pílula, desde que seja escrupulosamente cumprido e em mulheres em que possa ser aplicado.

 

Isto é válido para a grande maioria das mulheres que têm ciclos "irregulares" e até para pessoas iletradas ou cegas. Há estudos fidedignos, controlados pela World Health Organisation, que assim o confirmam. E é preciso entender que este método não serve só para evitar uma gravidez, mas também para ajudar mulheres a engravidar e a cuidar da sua saúde ginecológica e endocrinológica. Acho, muito sinceramente, que deveria ser ensinado nas escolas para que todas as meninas pudessem entender melhor os seus ritmos fisiológicos e identificar sinais de alarme na sua saúde futura.

 

Dito isto, urge explicar então o grande busílis do método - as regras altamente rigorosas que é preciso cumprir se o queremos usar para prevenir uma gravidez. Em traços muito grosseiros:

 

1) Não pode haver actividade sexual nos dias de maior fluxo menstrual.

 

2) Desde a menstruação até à identificação do "pico de fertilidade" (que precede em menos de 24 horas a ovulação) a actividade sexual tem que ser praticada em dias alternados, para o sémen não mascarar as características do muco.

 

3) Depois do pico identificado devem ser cumpridos três dias de abstinência.

 

4) A partir do quarto dia até ao próximo fluxo menstrual não há qualquer restrição na actividade sexual.

 

Pessoalmente, acho óptimo que haja imensos casais felizes que conseguem controlar a sua fertilidade com este método e parece-me completamente lógico que ele (e não o dos calendários ou das temperaturas isoladamente) faça parte da orientação da Igreja para a vida sexual dos casais católicos. Mas falo em orientação. Não em imposição.

 

Isto porque há imensos casos em que este método não pode ser aplicado eficaz e salutarmente por múltiplas e variadas razões. É bem verdade que a grande maioria das pessoas usa a desculpa dos ciclos irregulares para nem sequer tentar. É bem verdade que é muito mais fácil tomar um comprimido ou levar uma injecção mensalmente para conseguir viver uma vida sexual descontraída. É bem verdade que o valor da renúncia não é universal.

 

Mas não vejo como a Igreja deva impor (para dar dois ou três exemplos) a um casal que está a viver o drama de um cancro na sua vida, em que um deles está a fazer quimioterapia ou algum medicamento teratogénico e que por isso não pode engravidar, que não pode manter a vida sexual que a sua reduzida líbido lhe permitir e que tão bem lhe fará ao corpo e à alma. Nem como um casal que trabalha por turnos e que raramente se encontra entre os lençóis deva sentir o peso de estar a cometer um pecado quando o cansaço e o horário lhes permite fazer amor. Nem como pessoas que vivem em contextos sociais complicados, com dificuldades em entender a mensagem que lhes é transmitida, não poderão controlar a sua própria fecundidade sob pena de não serem aceites pela sua comunidade. Para mim, não é nada disto que o Deus Amor quer.

 

É claro que a pílula é um medicamento, e como tal serve, para além de anticonceptivo, para tratar muitas mulheres. É claro que não deve ser tomada por períodos muito longos e se isso acontece em geral está errada a abordagem médica subjacente. É claro que os efeitos secundários devem ser ponderados e evitados/ tratados. Mas há muitas situações, sim, em que a toma da pílula é recomendável.

 

Falou-se aqui de preservativos e como eles podem não ser um método eficaz em determinados contextos para evitar DSTs. Claro que sim. Nunca me esqueço, quando estive a trabalhar em Cabo Verde depois de acabar o curso de Medicina, de me aparecer na Delegacia de Saúde um homem zangado por ter feito como lhe recomendaram, usando o preservativo sempre que teve relações, e estar novamente com gonorreia. Foi uma situação anedótica: o homem vinha com o preservativo no dedo, e fora assim que o tinha usado durante as relações sexuais, tal como a higienista lhe tinha explicado.

 

Há muita dificuldade em transmitir informação por múltiplas e variadas razões, mas a utilização do preservativo já evitou incontáveis mortes por doença e há situações em que não existe alternativa. E a Igreja deve carimbar de pecador esses homens? Por favor. É claro que ainda temos muito caminho a percorrer até que cada pessoa neste mundo possa escolher responsável e livremente a sua vida sexual e a sua fertilidade, mas devemos dar um passo de cada vez, protegendo sempre (e para mim incondicionalmente) a vida humana.

 

publicado às 06:39
editado por João Miguel Tavares às 15:09


Sobre a tolerância

por João Miguel Tavares, em 16.10.14

A Teresa Power faz uma observação pertinente sobre a tolerância nos comentários a este post:

 

João, um pequeno - mas importante - comentário sobre algo que me está a irritar: o tema da tolerância. Se um ateu ou um "católico ateu" diz algumas coisas com tom de certeza e, como tu próprio bem sabes, sem qualquer intenção de mudar de ideias, ninguém lhe chama intolerante. Se um católico "conservador" ou lá o que isso seja diz de sua justiça no mesmo tom, já é considerado intolerante.

 

Queria apenas esclarecer isto: a intolerância ou a tolerância testam-se na vida, e se alguém aí me viu alguma vez com atitudes intolerantes, então tem toda a razão em afirmar que o sou. Até lá, não dei a ninguém o direito de me chamar intolerante. Sou muito segura das minhas ideias e muito convencida da minha verdade? Sim, sou, de algumas, que outras estão em contínua mudança e, como já afirmei aqui, o que penso hoje não pensei sempre, o que faço hoje não fiz sempre. Mudo de opinião muitas e muitas vezes na minha vida, graças a Deus. Mas não sou intolerante.

 

Nunca julgaria ninguém pelo tipo de método que utiliza - aliás, nunca o perguntei a ninguém, nem diretamente, nem indiretamente - e nunca julgaria ninguém pela sua religião ou outra opção de vida. Como sabes, os retiros que organizo estão abertos a ateus e a pessoas de outros credos, e os meus amigos contam-se entre todos estes. Haja paciência!

 

publicado às 21:09


O meu catolicismo (e os argumentos de autoridade)

por João Miguel Tavares, em 16.10.14

Nos comentários a este post, o João Miranda Santos levanta mais uma série que questões que merecem uma explicação da minha parte. Eis a segunda metade da sua argumentação:

 

É verdade que não sei muito a respeito da vida religiosa do JMT (prometeu falar disso mas ainda não chegou a hora), mas pelo menos já sei que para si rezar sempre foi embater no silêncio, e que a sua fé tem a espessura de um fio de cabelo. Também não percebi se se identificou aqui como católico progressista (seja lá isso o que for), o que implicava assumir-se como católico.

Ora, os católicos acreditam que quando um sucessor de Pedro se pronuncia numa encíclica, o que ali se diz é mais do que uma conversa de café, é mais do que um qualquer comentário a um jogo de futebol. Por isso eu entendo que o facto de o JMT classificar a Humanae Vitae como um momento muito infeliz da história da Igreja é de uma grande arrogância, se se assumir como católico. Se não se assumir, então é jogar completamente fora de campo...

O JMT tem direito à sua opinião e às suas convicções, claro que sim. Mas quando se trata de atirar por terra uma encíclica, e ainda para mais quando se reconhece a delicadeza da sua fé e a dificuldade da oração (presumindo que isto signifique dificuldade na relação com Deus), acho que a Igreja, com a qual já tem uma longa relação, lhe merecia mais prudência. Isto sem por em causa a seriedade e o quanto já pensou sobre o tema.

Ou seja, sem o querer ofender, neste campo eu não olho da mesma forma para uma discordância sua como olharia se fosse da Teresa Power (só para usar um exemplo próximo e que o JMT conhece o suficiente para perceber a diferença a que me refiro), na prática é como se não tivessem a mesma "informação".

 

Muito brevemente: a minha relação com a fé sempre foi conturbada. Não tive propriamente uma educação católica, os meus pais não eram católicos praticantes na minha juventude, e devo ter tido para aí uma ou duas aulas de catequese. Mas o tema de Deus sempre me interessou, desde muito cedo, e discuti-o com fervor a partir dos meus 13 anos. Nessa altura eu afirmava-me como ateu, e suponho que ainda hoje me considere estruturalmente como tal, no sentido em que sou como Tomé mas não tenho um mão furada onde meter o dedo.

 

A partir do nono ou décimo ano tive um professor de moral que me marcou muito, passei a ler bastante sobre temas religiosos, descobri Taizé, que continua a ser uma referência espiritual para mim, envolvi-me em grupos de jovens, aprendi a tocar guitarra, comecei a participar nos Convívios Fraternos por causa de um padre de Proença-a-Nova que é muito importante nas nossas vida (na minha, na da Teresa e também na da Teresa Power), e aos poucos iniciou-se um processo de conversão. Fiz a primeira comunhão e o crisma já adulto, comecei a dar testemunho nos Convívios, construímos uma CVX (um grupo de reflexão que segue a espiritualidade inaciana) em Lisboa.

 

As dúvidas regressaram pouco tempo depois de começar a trabalhar - na verdade, nunca deixaram de lá estar. Abandonei os Convívios, porque me sentia hipócrita a apelar à conversão de outros quando a minha própria fé não tinha a convicção que eu julgava necessária para isso. Com o final da CVX deixei de ter uma comunidade de reflexão, e o final do papado de João Paulo II, mais os subsequentes escândalos de pedofilia, foram também pondo em causa a minha relação com a Igreja, da qual me fui sentindo cada vez mais afastado.

 

No entanto, o fascínio pelos Evangelhos sempre permaneceu intocado, desde o primeiro dia. Na verdade, é um fascínio sempre renovado, e acho que o nascimento dos filhos também ajudou a isso. A minha primeira aproximação à fé foi feita pelo lado da estética - aquilo era tão belo que deveria ter alguma verdade. Mas, com o envelhecimento e a paternidade, a dimensão ética tem vindo a ganhar peso - há ali tanta bondade que aquilo deve ter alguma verdade.

 

Mesmo que as dúvidas nunca diminuam, e a existência de um Ser Superior me pareça frequentemente inconcebível, desconfio que eu vá passar a vida toda neste bailado de aproximação e afastamento. Um bailado que é próprio de quem procura ser fiel a si próprio e à sua consciência, que lhe diz "Ele não existe", mas eternamente fascinado, como as mariposas (e as melgas), por uma misteriosa luz que lhe diz "anda cá".

 

Já me auto-intitulei, meio a sério, meio a brincar, como um "católico ateu". Depois descobri que Graham Greene chamou-se exactamente o mesmo a si próprio. O que significa que estou em excelente companhia. 

 

Assim sendo, e voltando ao comentário do João Miranda Santos, mesmo imerso na minha titubeante fé, sempre senti a Igreja como minha, e entre os numerosos defeitos da Igreja Católica há esta extraordinária qualidade: na prática, ela é um lugar de acolhimento, e não de expulsão. Os seus braços estão lá para abraçar, e não para empurrar - e graças a Deus hoje em dia está lá um papa que diz isso mesmo.

 

Daí eu nunca questionar a minha legitimidade para opinar sobre teologia ou encíclicas. Para mais estando a falar de uma religião que se formou, e propagou, junto dos gentios. Para mais estando a falar de um homem que disse ao ladrão que tinha ao seu lado, momentos antes de expirar, "ainda hoje estarás comigo no Paraíso" - o que significa que há a esperança da redenção até ao último suspiro. Para mais estando a falar de um homem, filho de Deus, que gritou na cruz: "meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?", o que ainda hoje me comove e me fortalece - se ele próprio sentiu o abandono e ficou, por que não hei-de eu senti-lo e ficar?

 

Por isso, vou ficando.

 

E por isso, também, vou opinando. Quando o João diz que "os católicos acreditam que quando um sucessor de Pedro se pronuncia numa encíclica, o que ali se diz é mais do que uma conversa de café", eu faço notar que, para mim, a Humanae Vitae é muito mais do que uma conversa de café, e nunca a tratei como tal. Se fosse apenas conversa de café ela não seria tão grave.

 

O que já me parece indefensável é esta conclusão: "classificar a Humanae Vitae como um momento muito infeliz da história da Igreja é de uma grande arrogância, se se assumir como católico". Certamente que o João não precisa que eu lhe comece a fazer uma lista das coisas que foram defendidas em documentos ao longo da história da Igreja, e que nós hoje consideramos uma barbaridade, pois não? Se a encíclica tiver 200 anos podemos dizer "realmente, que estupidez!", mas se tiver 45 anos já não?

 

Aquilo que não é nada católico, e muitas vezes os católicos parecem esquecer-se disso, é colocar os textos do Vaticano ao nível da Bíblia, numa quase equivalência sagrada. Do género: "se acreditas nisto, então obviamente também tens de acreditar naquilo". Não, não tenho. É por isso que a Bíblia permanece como está há tantos séculos e os catecismos vão mudando de tempos a tempos.

 

Qualquer encíclica deve ser olhada com a mesma seriedade com que foi escrita, certamente, mas não devemos fazer dela um bezerro de ouro, ou forçar a nossa consciência e a nossa inteligência a aderir a um documento que, para nós, não faz qualquer sentido. O papa não é Deus, e os últimos papas até têm tido a simpatia de não invocar o problemático dom da infalibilidade.

 

É evidente que o João tem todo o direito de não olhar da mesma forma para uma discordância minha como olharia "se fosse da Teresa Power". Se se sente mais identificado com o que ela escreve, isso faz todo o sentido. O que não faz sentido, a meu ver, é sugerir a ideia de que sobre este assunto os meus argumentos valem pouco porque não sou católico (ou sou um pobre católico, vá). Em primeiro lugar, porque a Igreja tem uma ambição universal - ela fala para todos, e não para uma seita de fiéis. E, em segundo lugar, porque a qualidade dos argumentos deve valer por si, e não por quem os profere.

 

Quando assim não é, a esses argumentos chamam-se "argumentos de autoridade". E os argumentos de autoridade não costumam valer grande coisa. Nem dentro da Igreja Católica, nem fora dela.

 

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publicado às 15:25


Sobre os métodos naturais #2

por João Miguel Tavares, em 16.10.14

Bom, vamos cá ver se me despacho com este post, porque eu não consigo escrever tão depressa quanto as novas questões que vão surgindo e me dão vontade de contra-argumentar.

 

Os argumentos da Teresa, já citados aqui, vão a itálico e a negro, e aquilo que eu tenho para dizer vai a redondo.

 

Podes usar as pílulas e os preservativos que quiseres, desde que não estejas a chamar à tua relação um espelho da relação entre Cristo e a Igreja, ou seja, um sacramento.

 

Esta é uma entrada da Teresa a pé juntos, mas eu não sou queixinhas. A única coisa que posso garantir é que tenho infinitas falhas no meu casamento, bem mais graves do que o uso de preservativos, até porque nem os uso. Se o espelho está partido, e muitas vezes cai, parte-se, e volta-se a colar, duvido que seja por causa das minhas actividades entre lençóis. Esse é o primeiro problema grave desta questão, que marcou estupidamente a história da Igreja durante toda a metade do século XX: uma obsessão com a moral sexual que a desviou de tanta, mas tanta, coisa mais importante. O papa Francisco parece estar finalmente a corrigir isso e a recentrar prioridades. Abençoado seja ele.

 

Na sua belíssima encíclica, que classificaste de infeliz, a Igreja condena a contraceção porque ela afasta o amor humano da "imagem e semelhança" do amor divino, que é um amor sem limite, abundante, aberto à vida, verdadeiro. Um católico, ao "casar pela Igreja", isto é, ao receber o sacramento, recebe também a responsabilidade de tornar a sua relação semelhante à relação esponsal entre Cristo e a Igreja. O amor de Cristo não é nunca um amor contraceptivo. Não há volta a dar!

 

Segundo problema: eu não quero entrar nas questões teológicas acerca da "relação semelhante à relação esponsal entre Cristo e a Igreja" porque se trata, no meu entender, da mera construção de uma arquitectura argumentativa em cima de um preconceito. Pecado, aliás, que atravessa a Igreja ao longo de séculos. Tipo: "eu acho mal o uso de contraceptivos (até porque o sexo nunca foi coisa bem vista, como é óbvio), agora deixa-me cá encontrar um argumentação que justifique isto".

 

Aos meus olhos, a Humanae Vitae tem essa atitude, do princípio ao fim, daí a ter considerado um momento muito infeliz na história da Igreja - é uma encíclica que tenta justificar um preconceito com uma argumentação com base na Lei Natural, que é aquela coisa que dá absolutamente para tudo. Desde que espremas um bocado a Lei Natural, ela confessa o que quiseres. Afinal, os contraceptivos são uma consequência dessa maravilha natural que é o cérebro humano, que Deus Nosso Senhor nos convida a usar. E os preservativos, quando eram feitos de pele de carneiro, eram super-naturais. Na verdade, não tem fim o cortejo de barbaridades que ao longo da História se apoiou em cima do argumento da "Lei Natural".

 

Mas olhemos mais em detalhe para a encíclica. A Humanae Vitae deriva do velho ensinamento que "qualquer acto matrimonial deve permanecer aberto à transmissão da vida", não cabendo ao homem separar o "significado unitivo" do "significado criador". E quando nós perguntamos: porquê? A resposta é: "porque está em contradição com o desígnio constitutivo do casamento e com a vontade do Autor da Vida". Que é uma espécide de "porque sim". Porque Deus assim ordena. Mas eu, que sou teimoso, gosto de compreender aquilo que Deus me ordena. Porque, em geral, não tenho quaisquer problemas de compreensão com aquilo que me é ensinado nos Evangelhos. Apenas como algumas coisas que me são ensinadas no Catecismo.

 

O resultado deste posicionamento unitivo-criador é que a Igreja não se limitou a condenar os contraceptivos na encíclica. As notas pastorais dela derivadas condenam também a fecundação in vitro, e não só por se desperdiçarem potencialmente vidas já geradas (uma preocupação legítima). Tal como condena a laqueação de trompas em qualquer caso, mesmo que uma mulher tenha feito várias cesarianas e uma próxima a coloque em risco de vida. Porque Deus lá sabe o que é melhor para nós.

 

Só que, ao mesmo tempo, como nenhuma espécie de planeamento era impensável em 1968, permite os "métodos naturais", aos quais o Carlos Duarte já chamou nos comentários, e muito bem, uma "batota canonicamente legalizada". Porque a única diferença entre uns métodos e outros é, precisamente, serem "naturais" e convidarem à "castidade". Ora, se há coisa a que um pai de quatro (já para não falar de seis ou sete) não precisa de ser convidado é a praticar a castidade - com a falta de tempo, o stress e o cansaço não fazemos nós outra coisa, não é?   

 

E deixa-me dizer-te, para encerrar o comentário - não comentarei mais sobre este tema - que mesmo que a Igreja dissesse outra coisa, eu nunca voltaria atrás na minha decisão de não tomar medicação para fazer amor.

 

Mas ninguém te pede para voltares atrás. Para mim, é como a castidade dos padres: deveria ser uma opção. Daí eu falar num post anterior "que a Igreja deve reduzir as suas imposições àquilo que é o centro irredutível da fé cristã". Naquilo que não é absolutamente central e não tem uma deriva óbvia dos Evangelhos, como é manifestamente o caso, a atitude da Igreja deveria ser de convite, e não de imposição. Tu podes convidar as pessoas a utilizar os métodos naturais, por entenderes que esse é um caminho mais perfeito, mas não deves condená-las por não o fazerem.

 

Ou seja, eu não tenho qualquer problema com quem utiliza os métodos naturais, se isso os faz mais feliz na sua cama e realizados na sua fé. Mas tenho tudo contra dizerem a um católico que ele não pode chamar ao seu casamento um sacramento só porque utiliza a pílula ou o preservativo. Sorry.

 

Acho triste um marido permitir à sua esposa tomar medicamentos - a pílula é um medicamento, sabias? - para que ela esteja sempre disponível para o sexo. O ciclo natural da mulher é uma das maiores maravilhas da natureza, e conhecê-lo e respeitá-lo em casal é uma das grandes graças que nós tivemos desde que nos casámos.

 

Aqui parece-me que cais no velho preconceito de colocares o marido na posição de quem quer sempre o truca-truca e a mulher na posição do "ok, se tu queres, lá tem de ser". Admito perfeitamente que possa ter sido uma formulação que te saiu mal. Só que, infelizmente, é uma formulação derivada da própria encíclica, que tem passagens como esta: "É ainda de recear que o homem, habituando-se ao uso das práticas anticoncepcionais, acabe por perder o respeito pela mulher e, sem se preocupar mais com o equilíbrio físico e psicológico dela, chegue a considerá-la como simples instrumento de prazer egoísta e não mais como a sua companheira, respeitada e amanda." É esta a linguagem empoeirada que tu chamas "belíssima", Teresa?

 

Mais: penso que, 46 anos depois da Humanae Vitae, podemos dizer que o papa Paulo VI se enganou rendondamente: a pílula fez muito mais pela libertação sexual das mulheres - ou, se quiseres, pela sua "licenciosidade" - do que pela libertação sexual dos homens, que sempre estiveram, aliás, bastante libertos.

 

A fertilidade feminina não é uma doença, não precisamos de medicação para viver uma vida sexual plena e feliz. Planeando naturalmente a nossa família, os dias deixam de ser todos iguais... Graças a Deus, a minha vida sexual é plena e abundante, os meus filhos também são numerosos, mas ainda não engravidei sem o desejar.

 

O argumento farmacêutico, de que isto é tudo um complô da indústria, não vou sequer rebater. Mas noto que o preservativo não é um medicamento, e portanto se o problema fosse a medicação, ele tornar-se-ia legítimo. Não é isso que tu defendes. Quanto a nunca teres engravidado sem desejares, fico muito feliz por isso. Como bem sabes, milhões de mulheres em todo o mundo não podem dizer o mesmo. Mas também não vale a pena entrarmos aqui na questão de saber quantos abortos poderiam ter sido evitados se os ensinamentos da Igreja fossem outros.

 

Embora a Igreja ensine que há males menores que devem ser tolerados para evitar males maiores, o importante neste tema é que eu, e milhões de pessoas como eu, por mais que abram o seu coração e tentem estudar os argumentos da Igreja, não encontram a menor lógica na sua posição em relação aos métodos contraceptivos. Não se trata de ser um mal menor. Trata-se de não ser um mal. E de, muitas vezes, ser até um bem.

 

 

publicado às 11:01


Sobre os métodos naturais #1

por João Miguel Tavares, em 15.10.14

A Teresa Power e o João Miranda Santos responderam na caixa de comentários aos meus comentários sobre a encíclica Humanae Vitae, que no final dos anos 60 definiu a doutrina da Igreja em relação às questões do planeamento familiar, proibindo quaisquer métodos anticonceptivos artificiais.

 

A Teresa utiliza uma argumentação que eu tentarei amanhã analisar em detalhe, e com a qual estou evidentemente em desacordo. Ela prometeu não regressar ao tema porque teme (estará certamente escaldada) a agressividade habitual deste debate - felizmente, não tem estado a cumprir a promessa e tem havido troca de argumentação interessante na caixa de comentários, em particular com o Carlos Duarte. Se puderem, passem por lá.

 

A posição do João é um pouco mais irritante (sem ofensa), porque me acusa de "incoerência brutal" e garante que eu não percebo nada do assunto. Diz ele:

 

É demasiado fácil opinar sobre o que não se conhece nem se faz por conhecer.

 

E mais à frente recorda a minha "responsabilidade social":

 

Quanto mais não seja a responsabilidade de manter a coerência e inteligência (que costuma ter e me traz por cá)... a menos que queira chegar às 40 mil visualizações.

 

Porque é que isto é irritante? Ou melhor, triplamente irritante? Porque confunde:

 

1) discordância com ignorância (eu não sei do que estou a falar);

 

2) discordância com erro (como não sei do que estou a falar, só posso estar errado);

 

3) discordância com procura de popularidade (eu quero é "chegar às 40 mil visualizações").

 

Lamento, João, mas isto é aquilo a que se chama uma posição totalitária. Ou, se preferir, uma posição cavaquista, já que, segundo declarou o nosso sábio presidente numa famosa entrevista televisiva de 2005, “duas pessoas sérias com a mesma informação têm de concordar”.

 

Não, João, duas pessoas sérias com a mesma informação não têm de concordar. E isto será sempre o melhor ponto de partida possível para qualquer debate.

 

Como a Teresa Power me conhece um pouco melhor, pelo menos teve a amabilidade de não me acusar de eu não fazer patavina de ideia do que estou a falar. A minha relação com a Igreja, embora atribulada, já tem mais de um quarto de século, e um católico informado, como certamente será o caso do João Miranda Santos, sabe com certeza distinguir um ensinamento de um dogma. E, graças a Deus, o uso que os católicos dão ao latex, tal como o celibato dos padres ou as aparições de Fátima, ainda não pertencem ao campo da dogmática.

 

Os católicos mais conservadores têm, por vezes, essa tendência chata de dar uns encontrõezinhos nos católicos mais progressistas, sugerindo que quem discorda deles, mesmo em matérias não-dogmáticas, está, de certa forma, desencontrado da comunhão com a Igreja. Eu sei que têm a ajudá-los uma longa tradição, e que os dois papas anteriores a Francisco eram destacados conservadores, não particularmente interessados em inovações teológicas. Mas importa compreender que há uma fidelidade à consciência individual reconhecida pelo Concílio Vaticano II, que não pode ser atropelada pela exigência de um seguidismo acrítico a qualquer documento ou encíclica exarada pelo Vaticano.

 

Ou seja, o que eu peço a quem discorda de mim é a generosidade de aceitar que as minhas convicções em relação a este tema são tão sérias, pensadas e profundas quanto as convicções de quem acha que não deve utilizar métodos contraceptivos. Se o João Miranda Santos e a Teresa Power entendem que a recusa desses métodos é o caminho mais perfeito para espelhar a relação de Cristo com a Igreja, eu acho - e amanhã tentarei explicar porquê - que a Igreja deve reduzir as suas imposições àquilo que é o centro irredutível da fé cristã, para não cair numa obsessão pela lei que a leva frequentemente para os braços do mesmo farisaísmo que Cristo sempre combateu.

 

Eu não encontro nada sobre contraceptivos nos Evangelhos - apesar de, como diz a Teresa, eles terem existido desde sempre -, mas encontro muitas coisas sobre o cumprimento de leis que se tornam mais importantes do que a dignidade e as necessidades do Homem. Mas o que eu quero, para já, não é argumentar a favor ou contra a contracepção - é invocar o direito a que os meus argumentos sejam levados a sério, e não interpretados com paternalismo ou acusações de ignorância. 

 

Amanhã regressarei ao tema. Para já, fiquem com a argumentação da Teresa Power:

 

Podes usar as pílulas e os preservativos que quiseres, desde que não estejas a chamar à tua relação um espelho da relação entre Cristo e a Igreja, ou seja, um sacramento. Na sua belíssima encíclica, que classificaste de infeliz, a Igreja condena a contraceção porque ela afasta o amor humano da "imagem e semelhança" do amor divino, que é um amor sem limite, abundante, aberto à vida, verdadeiro. Um católico, ao "casar pela Igreja", isto é, ao receber o sacramento, recebe também a responsabilidade de tornar a sua relação semelhante à relação esponsal entre Cristo e a Igreja. O amor de Cristo não é nunca um amor contraceptivo. Não há volta a dar!

 

E deixa-me dizer-te, para encerrar o comentário - não comentarei mais sobre este tema - que mesmo que a Igreja dissesse outra coisa, eu nunca voltaria atrás na minha decisão de não tomar medicação para fazer amor. Acho triste um marido permitir à sua esposa tomar medicamentos - a pílula é um medicamento, sabias? - para que ela esteja sempre disponível para o sexo. O ciclo natural da mulher é uma das maiores maravilhas da natureza, e conhecê-lo e respeitá-lo em casal é uma das grandes graças que nós tivemos desde que nos casámos. A fertilidade feminina não é uma doença, não precisamos de medicação para viver uma vida sexual plena e feliz. Planeando naturalmente a nossa família, os dias deixam de ser todos iguais... Graças a Deus, a minha vida sexual é plena e abundante, os meus filhos também são numerosos, mas ainda não engravidei sem o desejar.

publicado às 21:27



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