Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Como já aqui referi várias vezes, o Tomás é o nosso filho melhor comportado, por uma longa distância. É super-certinho, em casa e na escola; tem um prazer genuíno em fazer os outros felizes; levanta-se antes de toda a gente (pais incluídos), veste-se e faz a cama; se pedirmos um voluntário para qualquer coisa ele é o primeiro a oferecer-se; e ainda por cima é um miúdo muito inteligente.
Fico muito feliz que ele seja assim, mas tamanha concentração de virtudes está a causar alguns problemas caseiros - ao ponto de eu começar a rever algumas posições que tinha por adquiridas. Para mim, sempre foi óbvio que deveria elogiar os filhos que se portassem bem, de todas as vezes que tal acontecesse. Mas, de repente, começo a descobrir que, se for utilizada de forma demasiado rígida, tal regra pode causar problemas no ecossistema caseiro.
Ou seja, embora em bom rigor eu devesse fazer corresponder os meus elogios ao mérito dos actos de cada um, sobrecarregar o Tomás de encómios causa um desequilíbrio grande, que acaba por transformá-lo, aos olhos dos outros, no menino-bonito dos papás. E quando digo "aos olhos dos outros" estou sobretudo a referir-me à Carolina, que embora adore o Tomás, parece ter uma certa frustração interior por não conseguir ser tão bem comportada quanto ele.
Colocado perante este quadro, o João Miguel de há quatro anos diria: "se ela não consegue ser tão bem comportada quanto ele, problema dela, esforce-se mais". Já o João Miguel de hoje em dia tem tendência para ser um pouco mais tolerante, e sobretudo para tentar perceber que inseguranças se escondem dentro da aparentemente toda segura Carolina.
Dona de uma personalidade muito mais forte e muito mais competitiva, a minha filha mais velha nem sempre consegue controlar o seu nariz empinado, e muito menos as suas respostas prontas, sempre na ponta da língua. Por isso, está frequentemente a ser corrigida com um "olha para o teu irmão e comporta-te como ele". Mas embora seja muito tentador dizer-lhe isso, eu e a Teresa temos conversado bastante sobre o assunto e sobre a necessidade de abandonarmos esta fórmula.
A frase é verdadeira? É. Temos de continuar a elogiar o Tomás pela sua generosidade e bondade? Temos. Mas não podemos deixar que se estabeleça um fosso demasiado grande entre filhos, naquilo que aos elogios diz respeito. Temos provavelmente de ser mais generosos para uns (Carolina e Gui) e menos generosos para outro (Tomás), de forma a que todos eles se sintam tratados por igual.
Grande parte do fascínio de ser pai é este: não adianta termos ideias demasiado rígidas sobre as coisas - a realidade acaba sempre por nos trocar as voltas. O segredo está, pois, em sabermos adaptar-nos ao contexto e irmos corrigindo os nossos procedimentos, de forma a manter uma família unida. Tão importante quanto os meus filhos terem um excelente carácter é assegurar que eles sejam grandes amigos pela vida fora. E para isso, eles não podem de forma alguma sentir que uns são bestiais e que outros são um bocado bestas (para utilizar a colorida linguagem do grande Toni).
Numa família numerosa, tal como numa equipa de futebol, não contam só os valores individuais. É necessário colocá-los ao serviço do colectivo, mesmo que para isso seja necessário tratar de forma igual aquilo que é manifestamente diferente - uma frase, já agora, que nunca imaginei vir a escrever na vida.
Ou seja, estamos sempre a aprender.
A Carolina a pousar para a foto do 10.º aniversário, com o Tomás ao fundo a brincar com o iPhone
Os meus três filhos mais velhos estão a atravessar aquela fase complicada em que passam o dia a implicar uns com os outros, até porque ainda não sabem estar uns sem os outros. É isso que mais me anda a fascinar em termos antropológicos: eles deslocam-se em manada pela casa - se um está na biblioteca, mais tarde ou mais cedo os três acabam na biblioteca; se um vai para o quarto de brincar ver um filme, mais tarde ou mais cedo os três acabam a ver um filme.
Mas como é próprio das manadas, de vez em quando os machos alfa (e, neste caso, a super-fêmea alfa) começam à bulha - sendo que este "de vez em quando" é cada vez mais "vez" e cada vez menos "quando". Ou seja: é a toda a hora.
Sim, eu sei que há alguma coisa de muito bonito nesta fase de "não posso estar contigo nem posso estar sem ti", e sim, eu sei que um dia vou ter muitas saudades de fotografias como esta.
Mas enquanto a nostalgia não bate, as saudades do futuro não chegam para compensar a gestão diária dos pequenos conflitos fraterno-fratricidas, que podem tornar-se extremamente cansativos. O meu nível de gritaria caseira tem aumentado bastante nos últimos tempos, e a única coisa que me consola é a esperança de que as implicações de hoje sejam as solidariedades de amanhã.
O Gui, por exemplo, anda numa fase parva-parva-parva que me tira do sério mais vezes do que um relógio de cuco sai da gaiola, e a Carolina está com uma tendência para ser mazinha digna de Cruella De Vil (mas sem a parte de querer fazer mal a cães, estejam descansados). Ontem, ela recebeu da avó uma Nerf especial menina,
[para quem não sabe o que é "uma Nerf especial menina", é isto:]
e claro, os miúdos adoram andar aos tiros com aquilo pela casa (o pai também não desgosta, há que admitir - na verdade, estas novas pistolas de brincar são o sonho nunca concretizado da minha infância).
Até que a certa altura, após várias emboscadas e retiradas a grande velocidade pelo corredor, o Gui chega ao pé de mim a chorar e a apontar para a cabeça, mas com aquele género de choro que não chega a assustar progenitores, já que significa "estou a manipular-te psicologicamente para que tu castigues alguém que tem mais força do que eu", e não "chiça, isto está a doer-me como o caraças".
Ainda assim, percebi logo que a Carolina tinha feito asneira - o que em linguagem técnica de polícia se chama "uso de força desproporcionada" -, e depois de reunir as tropas comecei a falar com os dois.
- O que é que se passou, Gui?
- A Carolina deu-me um tiro na testa! [Choradeira]
- Tu deste-lhe um tiro na testa, Carolina?
- Não foi na testa, foi no peito.
- Foi na testa, sim senhora! [Mais choradeira]
- Foi no peito!
- Foi na testa!
- Onde é que foi o raio do tiro, então?
- Foi na testa!
- Foi no peito!
- Olha, Gui, és tu quem vai decidir, porque tu é que és a vítima do crime. Se o tiro foi no peito, não há castigo para ninguém, porque faz parte da brincadeira e tu também estavas a brincar. Se a Carolina disparou contra a tua testa de propósito, ela vai ficar fechada no quarto até à noite, e só sai para jantar. Onde é que foi o tiro, então?
E aí, embora seja mais do que certo ele ter mesmo levado com o cilindro de borracha na tola (aquilo não dói, caras leitoras mais sensíveis, não se preocupem, convém apenas proteger os olhos, por isso as pistolas vêm com óculos), a mãozinha do Gui dirigiu-se lentamente até ao peito e apontou para as costelas.
A Carolina safou-se do castigo. Eu fiquei contente por o Gui ter protegido a irmã. E daí a cinco minutos já estava outra vez aos gritos com eles.
É tão divertida a minha vida familiar.
Ontem cheguei já bastante tarde a casa e quando passei pelos quartos para ver os miúdos (olhar para filhos a dormir é uma das alegrias da minha vida, nem sempre pelas melhores razões) encontrei o Tomás e o Gui assim:
Cada um deles tem a sua cama, mas o Gui lá arranjou maneira de se enfiar ao pé do Tomás. Mais tarde, a Teresa decidiu separá-los, porque estavam com demasiado calor, e ao acordar nenhum deles se lembrava de ter estado a dormir com o outro. Pelos vistos, passou-se tudo em estado narcoléptico, durante o sono.
Essa inconsciência apenas torna o gesto do Gui e a anuência do Tomás mais bonitos. De dia, o Gui, o Tomás, a Carolina, e de vez em quando até já a Rita, embirram frequentemente uns com os outros. Mas por debaixo dessa superfície turbulenta há um companheirismo entre todos eles que eu espero que o tempo não seja capaz de destruir.
Esta é uma foto muito consoladora. Daqueles em que um pai olha e sente: estou a fazer as coisas bem.