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Eu não queria voltar ao tema da autonomia, mas a leitora Ana Isabel escreveu nos comentários a este post uma coisa que me parece muito importante:
Já se sabe que é perigoso [os miúdos] fazerem uma data de coisas sozinhos, mas realmente tem de ser porque não existe outra maneira de aprenderem a defender-se. Garanto que é pior [os pais] andarem sempre em cima deles, pois correm o risco de os superprotegerem e isso pode ter consequências muito graves para toda a vida.
Eu, infelizmente, sei [do que estou a falar], pois tenho um caso na família, em que tenho acompanhado, sem poder fazer nada, uma mãe a estragar dois filhos. Como ela não consegue lidar com os seus medos, resolveu prender completamente as crianças, e além disso ainda as "informa", assustando-as, das consequências que os seus actos podem ter. Tanto [assim é] que nunca tinha visto uma criança de três anos que, quando dá um passo fora da porta, pede para pôr o chapéu, pois o sol faz mal. Tudo o que é exagero [é que] faz mal.
Esta partilha da Ana Isabel fez-me recordar uma história recente que eu próprio vivi, num jogo de bola com outras crianças. A certa altura, a bola saltou para trás de uns arbustos que davam pelo joelho de um miúdo que teria talvez 11 ou 12 anos. Era um puto enorme. Qualquer criança normal pularia por cima daquilo para agarrar a bola, e depois voltaria rapidamente para o jogo. Não custava nada. Mas ele ficou a meditar um pouco, "consigo ou não consigo?", e depois achou que não era capaz. E decidiu ir dar uma volta de 20 metros para circundar o mini-arbusto e apanhar a bola.
Fiquei muito impressionado com aquilo. Era claramente um miúdo super-protegido, filho daquilo a que chamamos pais-colchão - ainda as crianças não estão a cair e eles já estão a agarrá-las. O exagero nessa obsessão securitária está nisto: de tanto serem marteladas com "tem cuidado!" e "não podes!", às tantas os miúdos já acham que não são capaz de fazer as coisas mais básicas, que estão completamente ao seu alcance. O arbusto é como o outro - o problema, mais tarde, pode vir a ser o emprego, as relações amorosas, tudo aquilo que na vida é realmente difícil.
Conhecem a história dos elefantes no circo? Diz-se - não sei se é mito - que desde pequenos lhes colocam grilhetas nas patas, presas por uma corrente, da qual não se conseguem libertar, porque ainda não têm força. E depois, quando são elefantes adultos, continuam a estar presos à mesma corrente, embora nessa altura já tenham força mais do que suficiente para rebentar com ela - simplesmente, nem sequer tentam, porque acham que não conseguem. Foram educados assim.
Dizer que andamos a criar pequenos elefantes de circo nas nossas casas seria um manifesto exagero. Há imensos pais que se esforçam por empurrar as crias para fora do ninho. Agora, que quase todos temos, nalguma altura das nossas vidas, de fazer um esforço genuíno para não acorrentar os filhos às pernas dos sofás, isso temos.
Escreveram duas leitoras na caixa de comentários, a propósito do meu post anterior:
João, peço desculpa mas este assunto deveria ter ficado na esfera privada. Se fosse a sua esposa não gostaria de ler este post. Como mãe de um adolescente de 17 anos, digo-lhe que, ainda hoje, fico à espera do sms a dizer que já chegou a casa...
Isto disse a Isis. A MP defendeu uma posição muito semelhante:
A Teresa sabe que escreveu este post? Se ela estava muito reticente com esta ideia, agora não sei se será mesmo contra. Então vem dizer para um blog público, com fotografias dos seus filhos, que um deles pode passar a ir/vir sozinho da escola, e ainda dá a localização aproximada?
Ora bem. Faço notar que no meu post anterior eu remetia para um texto onde um pediatra português denunciava aquilo a que chamou a "cultura de segurança fóbica". Donde, embora as preocupações da Isis e da MP sejam perfeitamente legítimas e compreensíveis, elas vêm de encontro precisamente àquilo que eu criticava no meu texto de ontem.
É muito natural que a Teresa não tenha gostado do que escrevi, no sentido em que eu acho que ela também partilha um bocadinho dessa fobia securitária, e estamos todos a precisar de trabalhar cá em casa as questões da autonomia e da independência. No artigo do Público referido acima, Helena Sacadura, da Associação Portuguesa de Segurança Infantil (APSI), diz algo com que também concordo muito:
"A APSI anda há 21 anos a chamar a atenção para o facto de não podermos pôr as crianças dentro de redomas. Uma criança que não corre riscos não aprende os riscos que pode correr [mais tarde]. Hoje, temos crianças superprotegidas na área do brincar, não têm autonomia e não são responsáveis. São analfabetos do corpo."
São analfabetos do corpo quando andamos a correr atrás deles nos parques infantis, e são analfabetos do corpo e da mente, na minha opinião, quando não os deixamos andar sozinhos ao lado de casa aos 10 anos de idade.
Eu ando a picar a Teresa a ver se ela vem dizer de sua justiça aqui para o blogue. O PD4 tem apenas um décimo da graça que pode ter quando sou só eu a escrever posts. O PD4 nasceu como um projecto a dois, e não tem graça ser só eu a amamentar a criança. Este filho é claramente desprezado em relação aos outros quatro. De qualquer forma - e antecipando a sua intervenção -, a excelentíssima esposa dirá que é a nossa filha mais velha que ainda não se acha preparada para dar esse passo de ir sozinha. Eu acho que somos nós que não estamos a fazer o suficiente para a preparar.
Mas deixem-me dizer só mais uma coisa em relação à "vida privada" e ao facto de eu não dever estar a contar isto num blogue. Este blogue nasceu por várias razões, e uma das principais - digamos que está no top 3 das razões decisivas - tem a ver com um combate, chamem-lhe missionário, se quiserem, contra o desaparecimento das crianças - e, por arrasto, da família - do espaço público. Não gosto de viver num mundo de crianças com caras pixelizadas, a não ser por razões óbvias (se foram abusadas, por exemplo). Esse desaparecimento faz parte de uma mesma cultura securitária que, paradoxalmente, empurra os mais pequenos para a sombra na civilização de todos os holofotes.
A Teresa não partilha totalmente desta minha opinião, e portanto eu acabo por ter algum cuidado com a exposição dos nossos filhos. Mas recuso-me - e recuso-me mesmo, apesar dos medos que todos temos, e eu também - a esconder os filhos só porque apareço na televisão, escrevo nos jornais, e alguém pode querer fazer-lhes mal por eu ser mais de direita do que de esquerda. Como dizem os americanos, "shit happens", mas eu não vou viver a minha vida atemorizado por isso.
Eu não sou diferente dos outros pais: da primeira vez que a Carolina for para a escola sozinha também vou querer receber um sms quando ela chegar à porta. Mas não deixo que os meus medos se sobreponham à convicção - que quaisquer estatísticas demonstram com facilidade - de que vivo num mundo muito mais seguro do que há 100 anos, ainda por cima sendo eu um optimista que acredita que 98% das pessoas é gente decente, que tenta agir correctamente no dia-a-dia - e que estaria pronta a ajudar os meus filhos se eles precisassem, mesmo não os conhecendo.
Eu sou jornalista. Eu vejo as notícias. Eu fui editor da secção de Sociedade do Diário de Notícias durante boa parte do caso Maddie McCann. Mas o impacto destes casos é proporcional à sua raridade. Estatisticamente, a minha filha mais velha corre mais perigo de vida quando se enfia no carro comigo para ir para Portalegre do que quando vai sozinha a pé para a escola.
Os nossos filhos têm medo do escuro. Nós temos medo que qualquer coisa de terrível aconteça aos nossos filhos. Acham mesmo que só os medos deles é que são irracionais?
Os leitores do Pais de Quatro cresceram a ler demasiada Agatha Christie e Arthur Conan Doyle. Resultado: encontraram certas incongruências suspeitas na minha narração dos factos do acidente caseiro, em resposta a um post da Teresa sobre a queda da Rita na semana passada. Diz LA-C, em representação de todos os outros:
Não percebi como é que essa desculpas todas explicam que tivesses tido de mandar a tua filha mais velha dar a informação à mãe.
É muito simples: eu não mandei nada. Foi ela quem me pediu. E muito. Este é um daqueles casos em que a culpa é mesmo do mordomo. A Carolina, talvez por se sentir importante e por ser a mana cuidadora da Ritinha, implorou que fosse ela a relatora da tragédia. Depois de uns 300 "vá lá, vá lá, vá lá", com a Ritinha já a dormir pacificamente, eu acabei por ceder, no habitual telefonema de boas noites à mamã, quando ela está a trabalhar.
E a Carolina, claro, carregou na tragédia e no sangue, demonstrando um impressionante talento para a telenovela. Foi apenas isso que se passou. A excelentíssima esposa às vezes tem um certo mau feitio, mas ainda não cheguei ao ponto de ter medo de lhe dizer o que quer que seja, a não ser quando ela veste de cabedal, calça sapatos de salto agulha e vai buscar as algemas e a chibata.