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E se ter filhos não for assim tão giro? #2

por João Miguel Tavares, em 24.06.14

Parte I aqui. Parte II já a seguir.

 

PARTE II

 

A grande questão é: porquê? Porque é que andamos todos a sentir esta necessidade de exorcizar, através do riso, os fantasmas das crianças presentes? O que é que se passou com a paternidade para ela hoje ser um peso tão grande sobre os nossos ombros? Afinal, a espécie humana não começou ontem a ter filhos, certo?

 

Certo. Só que algures no último quartel do século XX, após a entrada em força das mulheres no mercado de trabalho, da luta pela igualdade dos direitos, do crescimento da geração baby boomer e da invenção de contraceptivos que nos permitem ter exactamente os filhos que queremos, e não aqueles que vão aparecendo, ocorreu uma verdadeira revolução copernicana no conceito de família: os filhos deixaram de orbitar em torno dos pais e os pais passaram a orbitar em torno dos filhos.

 

A consequência é esta: hoje em dia, à minha volta, só encontro pais a queixarem-se, mesmo que muitas vezes não percebam exactamente porquê (eu incluído). À primeira vista, lá está, parece um relativo absurdo histórico, sociológico e antropológico. Estima-se que o homo sapiens exista há 200 mil anos, e alguma ideia de família, ainda que vaga, existirá há tanto tempo quanto ele. Melhor ou pior, chegámos desde as cavernas até aqui, e durante milénios não se vislumbrou qualquer traço desta angústia moderna em relação à paternidade. Os filhos simplesmente tinham-se e criavam-se. Porque é que isso deixou de chegar?

 

A ciência económica talvez possa dar uma ajuda nesta resposta, se decidirmos recorrer à velha lei da oferta e da procura: os filhos, por opção dos pais e auxílio dos contraceptivos, tornaram-se um bem raro. E ao tornarem-se cada vez mais raros, foram-se tornando cada vez mais preciosos. E ao tornarem-se cada vez mais preciosos, deixaram de ser um assunto exclusivo das mães – os pais continuaram a produzi-los, como sempre o fizeram, mas passaram também a educá-los, como praticamente nunca o haviam feito.

 

Ao mesmo tempo, a evolução da medicina afastou o espectro da morte da criança. A morte de um filho é hoje uma tragédia raríssima – não um acontecimento comum. Portugal, como toda a gente sabe de já tanto ter ouvido falar nisto, é um dos países com a mais baixa taxa de mortalidade infantil do mundo. Segundo os dados disponíveis (números da Pordata), a mortalidade infantil caiu de 77,5 mortes por cada 1000 crianças em 1960 para 2,9 mortes por cada 1000 crianças em 2013. Estamos a falar de uma redução de 96% no espaço de apenas meio século.

 

Recuando 200 anos, a única forma de aferir acerca da mortalidade infantil (óbitos até ao primeiro ano de idade) ou juvenil (óbitos até aos sete anos) é através de comparações entre os registos paroquiais de baptismos e o número de óbitos. Segundo um estudo realizado pelo professor Cândido dos Santos (Nota sobre a Mortalidade Infantil nos Século XVIII e XIX), centrado em freguesias de Lisboa e do Porto, os números são assustadores. Entre 1780 e 1789, na freguesia lisboeta de Santa Catarina, a mortalidade infantil rondava os 125‰ e a mortalidade juvenil os 291‰. Isto significa que praticamente uma em cada três crianças morria antes de chegar aos sete anos de idade, sobretudo de “febres” (bronquite, escarlatina), “diarreias” (desinteria) ou “bexigas” (varíola).

 

 

Esse mesmo estudo mostra que os números não baixam ao longo de todo o século XIX – e quando surgiam epidemias, como a da cólera em 1833, o número de mortes era devastador. Ora, num mundo destes, aquilo que hoje temos como a mais traumática experiência humana – a perda de um filho – era necessariamente tida como um acontecimento natural. Os filhos morriam – e morriam muito. E nesse sentido, seria um absurdo que a afectividade por uma criança ocupasse uma parte tão central das vidas dos portugueses dos séculos XVIII ou XIX como ocupa na vida dos portugueses de hoje, em pleno século XXI. 

 

(Parte II de VII. Continua amanhã)

 

publicado às 09:30



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