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- Papá.
- Diz, Gui.
- O contrário de chapéu é sapatos?
- Não, Gui. A palavra "chapéu" não tem contrário, da mesma forma que vaca não tem contrário. O que tem contrário é alto e baixo, gordo e magro, vivo e morto.
- Papá, eu acho que já sei porque é que as pessoas morrem.
- Porque é que é, Gui?
- É porque o mundo está sempre a girar. Como ele gira as pessoas ficam um pouco tontas, e depois às vezes morrem.
Vou tentar explicar num instante, aproveitando o facto de a excelentíssima esposa estar de banco e não poder corar com os meus elogios, porque é que o comentário anterior da Ana Azevedo me toca tanto. Vocês podem querer dar-me o desconto por aquilo que eu vou dizer ser sobre a minha mulher, mas eu sei que tenho do meu lado, como testemunhas de defesa, não dezenas, mas centenas ou milhares de pessoas que já precisaram da sua ajuda e a quem ela acompanhou nos momentos mais emocionalmente difíceis das suas vidas; aqueles momentos de que a Ana fala e sobre os quais sente tanta necessidade de aprender.
Essa é simultaneamente a bênção e a maldição de um médico - viver uma vida de uma intensidade desmedida, ao lado de milhares de doentes que entregam tudo o que têm nas suas mãos. Então quando se trata de uma médica como a Teresa, especialista em hematologia oncológica, que durante muitos anos trabalhou no IPO de Lisboa, esse tudo é mesmo tudo, é habitar um forte isolado numa fronteira hostil, que a morte tenta diariamente assaltar. Não admira que tantos médicos sejam escritores - é uma profissão que pode conferir uma sabedoria imensa a quem estiver disponível para a abraçar de corpo e alma, como a Ana parece estar. Invejo-vos por isso.
E a verdade é que a Teresa nasceu para ser médica. Aliás, ela queria ser médica desde que se lembra, por razões que ela vos contará se quiser, e, de facto, mesmo nas alturas em que está mais desiludida com a sua profissão, nunca a imaginei a ser outra coisa. Ela às vezes quer imaginar-se outra coisa, mas no que depender de mim, nunca quererei que se imagine. Por uma razão simples: ela é uma médica extraordinária não por causa do tal "conhecimento médico-científico-orgânico" de que a Ana fala - embora seja impossível alguém ser bom médico sem conhecimentos sólidos na sua área -, mas exactamente por aquilo que a Ana procura e que na Teresa - sorte imensa a dela - é tão natural: saber "o que fazer ou dizer a alguém que chora copiosamente à cabeceira do pai que está a morrer".
Nesse sentido, a Ana veio bater a uma porta mais certa do que imagina: naquilo a que tipicamente se chama relação médico-doente, a Teresa tem um talento fora do comum. Eu já insisti com ela muitas vezes para se especializar nisso, para sistematizar isso, para escrever um livro sobre isso, mas ela chuta sempre para canto, dizendo que há óptimos livros sobre o assunto. Nunca me convenceu. Acho simplesmente que, como aquilo lhe sai de forma tão natural, seria como pedir para explicar aos outros aquilo que é óbvio para ela. E no entanto, como a Ana aqui mostrou tão bem, o dom da Teresa não é nada óbvio. E eu que o diga, que fico invariavelmente de boca aberta quando a vejo saber sempre, mas sempre, o que dizer, o que fazer, como tocar (e como o toque é importante!), como estar perante pessoas confrontadas com as situações mais brutais das suas vidas. Seja a sua própria morte, seja a morte das pessoas que mais amam.
Acho que seria capaz de ficar aqui a elaborar sobre isto até o Sol nascer. Mas tenho mais coisas para fazer e a Teresa pode ficar embaraçada a tal ponto que me vá querer bater por estar a dizer tudo isto (se eu não postar nos próximos três dias, já sabem: foi ela que me partiu os dedinhos ao chegar a casa). Até porque sendo um dom que a Teresa sabe que tem, e sabe que é raro, e sabe que é valioso, ela parece nunca o valorizar tanto quanto devia - ou então, talvez essa desvalorização seja parte integrante do próprio dom. Não faço ideia. Mas que é um enorme talento, é, e é por mim tanto mais admirado quanto eu sou o seu exacto oposto: muito melhor à distância do que perto; muito melhor a escrever sobre isto num blogue do que a falar disto ao lado de alguém que precise. A mim falta-me absolutamente esse dom.
Foi isso que eu tentei explicar num texto que escrevi em Março de 2011, para a página Os Homens Precisam de Mimo do Correio da Manhã, poucos dias após a morte de um dos doentes que mais marcaram a Teresa. O texto chama-se apenas "Filipe", e apetece-me deixá-lo agora aqui, como prenda para a Ana Azevedo, enquanto a Teresa está a trabalhar longe e a fazer aquilo para que nasceu.
FILIPE
Quando era pequeno, as minhas tias-avós achavam-me o miúdo mais antipático do mundo, porque eu nem um “bom dia” lhes dirigia. O meu irmão, que é quatro anos mais velho e sempre foi um rapaz falador e civilizado, tinha de me enfiar cotoveladas e rosnar baixinho um “diz olá à tia” para que a minha língua descolasse, e assim demonstrar à família que não tinha saído de uma gruta pré-histórica anterior à invenção da linguagem. Ainda hoje ele goza com essa minha absoluta inépcia social, que a idade foi polindo, mas sem curar.
Acreditem ou não, estou mais à vontade num anfiteatro a falar para 150 pessoas do que num bar a conversar com alguém que acabei de conhecer. Já a minha excelentíssima esposa é o contrário. Se tem de falar para um grupo de pessoas que está com os olhos espetados nela, parece Colin Firth no ‘Discurso do Rei’, com as palavras numa longa fila dentro da boca, à espera de um semáforo verde que parece não chegar. E no entanto, ela, que é médica, é um verdadeiro génio no um para um: nunca vi ninguém com tamanha capacidade para confortar as outras pessoas, saber ouvi-las e encontrar palavras que curam e acalmam.
Não vos vou contar quem era o Filipe porque eu próprio, apesar de lhe ter emprestado a primeira série do ‘Dexter’ e de ter feito alguns desvios nocturnos para lhe comprar pastéis de Belém, nunca cheguei a conhecê-lo pessoalmente. Apenas através das conversas da Teresa. Da preocupação da Teresa. Da sua angústia. E finalmente, da sua imensa tristeza. O Filipe morreu há dez dias no IPO, aos 20 anos de idade. No velório, a Teresa escutava, abraçava, consolava, como a brisa suave de que a Bíblia fala, num campo devastado. É um dom extraordinário que ela tem. Já eu, regressei à infância: estupidamente mudo, incapaz de dizer o que quer que fosse àqueles pais. Tenho 37 anos e ainda preciso das cotoveladas do meu irmão.
Há quem ache que de cada vez que elogio os leitores deste blogue só estou a passar graxa e a dar uma de relações públicas, mas acreditem que vocês são mesmo quatro estrelas e meia (só não digo cinco que é para continuaram a esforçar-se). Hoje tive um dia muito cheio e longe de hot spots, e é um gosto regressar a casa e ver a riqueza da caixa de comentários do post tétrico e pós-tétrico.
A provar, aliás, que a minha intuição hitchcockiana estava certa, a Ana Azevedo até decidiu regressar, qual Miss Marple, ao local do crime, para nos explicar os motivos da sua estranha pergunta sobre a morte de um filho. E a explicação é tão boa, mas tão boa, assim a um nível hitchcock-agatha-christiano, que o seu texto tinha, mais uma vez, de vir parar aqui. Até porque eu tenho uma ou duas coisas a dizer sobre ele (e a excelentíssima esposa teria para aí mil e uma, se não estivesse hoje de banco). Cá vai:
Boa tarde a todos! A publicação do post mais tétrico de todos os tempos é minha culpa! Não, não fui eu quem o escreveu!:) A pergunta que levou à sua escrita é que é minha!
Algures na caixa de comentários alguém perguntava o motivo que me levou a colocar aquela questão. Então cá vai:
- Sou estudante de medicina e até começar a estagiar, o sofrimento humano não fazia parte do meu conhecimento. Não vivia numa redoma, é certo, mas também nunca tinha ouvido tantos relatos trágicos por dia. E isso atrapalhava-me imenso, porque me tornava completamente impotente. Sei como tratar uma insuficiência cardíaca, mas não sei o que fazer ou dizer - se é que deva fazer ou dizer - a alguém que chora copiosamente à cabeceira do pai que está a morrer. Considero que, ao contrário do conhecimento médico-científico-orgânico que é tanto maior quanto mais ler sobre o assunto em livros e em artigos científicos, o conhecimento daquilo que é a essência humana do doente e dos familiares e como lidar com esse lado só se adquire com a experiência de vida. Estou a 1 ano dos 24 anos, a 1 ano de exercer medicina! Aos 24 anos ninguém - ou quase ninguém - tem essa experiência, logo se eu falar e discutir os assuntos com várias pessoas talvez aprenda com a experiência de vida dos outros.
- A morte na infância e todo o seu ónus sempre foi uma área que me sensibilizou de sobremaneira, pela minha ainda maior impreparação para lidar com o assunto. Na universidade vão-nos falando da morte do velhinho que tinha n patologias e que até estava num sofrimento atroz mas quase ninguém nos fala no menino que morreu com 5 anos. Vamos para os estágios nas áreas pediátricas e o mundo cai-nos aos pés. Li milhares de artigos sobre este assunto, li milhares de testemunhos e de opiniões mas sempre ávida por ler mais e mais. Não posso fazer nada pelo menino que está irremediavelmente doente... mas poderei fazer pelos pais? Se puder, eu tenho que descobrir!
- Sempre pensei que era "melhor" para um pai ou mãe perder um filho com 7 anos do que um filho com 7 dias: de um filho com 7 anos vai poder recordar-se dos momentos felizes que viveram, das coisas boas que ele lhe disse, de um filho com 7 dias vai ter saudades de tudo o que nunca teve mais o que poderia vir a ter. Depois comecei a ouvir os meus pais assim de levezinho quando anunciavam na imprensa a morte de alguma criança com leucemia comentarem "coitados dos pais, se o final era para ser este mais valia ter morrido ao nascer", encontrei as crónicas do JMT aquando do nascimento da Carolina e comecei a questionar toda a minha forma de pensar.
Sei que não há medidores da dor. Sei que se alguém perder no mesmo acidente a esposa e a filha se calhar vai ficar profundamente triste com a morte da filha "esquecendo" a morte da esposa enquanto que alguém que perde o marido e tem os filhos bem de saúde vai chorar a perda do marido como a maior das perdas. Sei que a fé pode ajudar a viver as perdas de outra forma. Sei que depois do que li ontem e hoje aqui no blogue estou muito, mas muito mais rica do ponto de vista humano. Só serei melhor médica se tiver a par de um conhecimento científico irrepreensível um conhecimento e um respeito humano profundíssimo!
Queria agradecer ao JMT e a todos os seus caros leitores por partilharem comigo a vossa opinião/ perspectiva. Muito, muito obrigada, do fundo do coração.
A Ana Azevedo deixou há dois dias uma pergunta um bocado tétrica na caixa de comentários deste post. A pergunta é esta:
Quando fala da relação que tinha com a Ritinha quando era uma pequenita só com alguns meses de vida, e diz que ela não era tão intensa como a que tinha com os restantes filhos, abre uma ligeira fresta, e eu vou entrar sem pedir licença, para colocar uma questão que já há muito tinha curiosidade em lhe colocar. Então:
Acha que quando morre um filho que ainda é bebé os pais sofrem menos do que quando ele já tem 5, 6, 7... 10 anos? E quando o filho tem 18, os pais sofrem menos ou mais morrendo ele nesta idade comparativamente se ele morresse aos 7 anos? E quando o filho já é um adulto, é mais dolorosa a sua morte? Gostava mesmo mesmo de ouvir a sua opinião relativamente a este assunto!
Francamente, Ana, acho que ninguém consegue responder a uma coisa dessas quando se trata de filhos com 5, 6, 7, 10, 18 ou 36 anos. Todos nós sabemos que a morte de um filho é a maior brutalidade emocional que pode acontecer a um ser humano, e ainda ninguém inventou um medidor de sofrimentos para poder avaliar uma coisa dessas.
A única diferença que sublinhei no post original foi na relação com recém-nascidos. É um tema que me interessa, sobretudo para salientar que o amor de um pai por um filho é um processo contínuo, e não um interruptor que se liga no momento do nascimento. Já escrevi sobre isso algumas vezes: quando a Carolina nasceu, os primeiros meses foram bastante difíceis para mim exactamente porque eu tinha na cabeça que o amor paternal seria uma coisa automática - eu olharia para a criança pela primeira vez no hospital e pimba, já estava, amor à primeira vista. Não é assim que acontece, e acho importante sublinhar isso, para que outros pais possam considerá-lo uma coisa normal se passarem pelo mesmo.
Aliás, para voltar a assuntos tétricos, mas importantes em termos de cultura geral, porque muito gente desconhece isto, a própria lei penal portuguesa tem essa diferença em conta ao separar o crime de homicídio do crime de infanticídio. Se uma mãe matar o seu filho na sequência de um parto (o caso da legislação brasileira, por exemplo, ainda é mais tolerante, não definindo um período específico para tal acontecer desde que exista uma depressão pós-parto) o crime tem o nome de infanticídio, e a moldura penal nada tem a ver com a de um assassinato.
Diz o artigo 136º do Código Penal Português: "Mãe que matar o filho durante ou logo após o parto e estando ainda sob a sua influência perturbadora é punida com pena de prisão de um a cinco anos." Segundo sei, nem sequer há mulheres presas por causa disso, já que a situação costuma ter grandes atenuantes. Note-se que um pai não pode cometer infanticídio. Apenas uma mãe.
Em resumo, eu diria - não sei se há estudos sobre isto, imagino que haja, pois há estudos sobre tudo, mas aqui falo apenas de uma constatação pessoal - que demora à volta de um ano, ano e meio, para os nossos laços de afectividade em relação a um bebé se equivalerem aos que temos pelos outros filhos. E isto para o caso dos pais. Para as mães é diferente, porque o bebé sai de dentro delas, e a relação que uma mulher estabelece com um recém-nascido é muito mais próxima do que a de um pai (mas também porque sai de dentro delas, o sentimento de repulsa, quando acontece, pode ser muito maior - daí a questão do infanticídio). Generalizo, como é evidente.
E pronto. Depois desta conversa toda, vou ali ver um filme de terror e já volto. Vocês, caros leitores, obrigam-me a escrever sobre as coisas mais estranhas.