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Na sequências dos posts desta semana, tenho recebido algumas sugestões de artigos e vídeos que debatem o assunto da obsessão securitária no mundo actual, no que às crianças diz respeito. Uma das sugestões mais proveitosas (obrigado, Miguel Barroso), e que aconselho a todos, é uma conferência de Tim Gill, intitulada Risk and Childhood.
Tim Gill
A sua intervenção tem cerca de 25 minutos (seguem-se outras intervenções igualmente interessantes), e o inquérito inicial com que provoca a audiência é extraordinariamente esclarecedor. Tim Gill começa por pedir ao público que tente recordar a melhor memória da sua infância. De seguida, pede para se levantarem aqueles cuja memória feliz foi vivida fora de casa, ao ar livre. Praticamente toda a gente se levanta. Finalmente, pede para se levantarem aqueles cuja memória feliz foi vivida fora da vista de adultos. De novo, praticamente toda a gente se levanta.
Eu também pensei nas minhas mais felizes memórias de infância. E sim, foram ao ar livre. E sim, foram longe da vista de adultos. Infelizmente, as crianças que estamos a criar não vão ter tantas oportunidades para poder responder o mesmo no futuro.
Gill aborda - e desmonta - os medos mais comuns dos pais, centrando-se nos parques infantis e no abuso de crianças. E a conferência, curiosamente, vem na sequência de um trabalho seu que foi publicado pela secção inglesa da Fundação Gulbenkian. Existe um pdf da sua obra, No Fear: Growing up in a risk averse society, totalmente gratuito aqui.
Não quero estar a chatear-vos novamente com isto, porque acaba por ser uma forma cientificamente fundamentada daquilo que já defendi nos dois textos anteriores. Contudo, não posso estar mais de acordo com Tim Gill quando ele afirma, ao concluir a sua intervenção, que a questão que merece ser mais discutida actualmente talvez não seja a do mimo, a do carinho ou a da disciplina, mas sim aquilo a que Gill chama "benign neglect" - uma muito útil "negligência benigna", sem a qual nos transformamos não só em pais obcecados, como abafamos os nossos filhos com tanto aperto e preocupação.
Só mais um ponto: na parte final do vídeo da conferência, já da boca de um outro interveniente (Tom Malarkey, da Royal Society for the Prevention of Accidents), sai uma magnífica frase, que eu estou a pensar transformar em mantra pessoal, e procurarei repetir muitas vezes: "try to make children lives as safe as necessary, not as safe of possible".
"Tentemos que as vidas das crianças sejam tão seguras quanto necessário, não tão seguras quanto possível."
A diferença entre uma coisa e outra é, de facto, gigantesca.
A caixa de comentários do post sobre "As virtudes da incerteza" está cheio de textos interessantes, e é-me impossível trazê-los todos para o corpo central do blogue. Vários deles mereciam ser debatidos, mas não sendo fisicamente possível fazê-lo opto apenas por convidar os leitores a passarem por lá. Abro uma excepção para um comentário da Helena Araújo, que em boa hora volta a opinar neste espaço. Diz ela:
Só queria fazer um comentário sobre esse "alfa e ómega". Os filhos não são o centro da nossa vida, são o centro da vida deles, e precisam da nossa ajuda para o encontrar. A esse respeito, ler o poema de Khalil Gibran sobre os filhos - penso que todos o conhecem.
Não são nossos, foram-nos confiados e estão inteiramente dependentes de nós - e essa é uma enorme responsabilidade.
Lembro-me muitas vezes de uma pergunta numa coluna de ética de um jornal (alemão, claro...). Um pai ia buscar o filho à escola, e trazia também o filho do vizinho. Para o seu próprio filho comprou uma cadeirinha caríssima, o XXL dos cuidados de segurança, mas para o filho do vizinho comprou uma cadeirinha barata. O pai perguntava: "será que devia sentar o meu filho na cadeira barata, e o do vizinho na cadeira mais segura, já que ele está sob a minha responsabilidade?"
O filósofo que assina a coluna respondeu que pela seguranca do filho do vizinho deve responder o pai do miúdo. A ideia de dar ao próprio filho uma cadeira menos segura é absurda, porque o seu próprio filho não tem mais ninguém que zele pelos seus interesses, nomeadamente pela sua seguranca.
"Não tem mais ninguém que cuide dele." Um bebé chora a meio da noite, sabe-se lá por que motivo - e só pode contar com o pai e com a mãe. O que é que estes fazem? Sabem merecer essa responsabilidade?
Acho muito curioso o exemplo que a Helena deu das cadeirinhas, e talvez, realmente, isso explique muita coisa - nomeadamente o facto de eu não ser alemão. No exemplo que dá, eu não hesitaria duas vezes: seria o filho do vizinho a ir na melhor cadeira e o meu filho a ir na pior.
Aliás, já aconteceu uma vez ou outra, em desenrascanços e imprevistos de última hora, ter de meter mais um par de miúdos no carro e, em distâncias muito curtas, um deles ter de ir no chão. Sendo ilegal (só este facto, aliás, seria impensável para um alemão - que provavelmente telefonaria para a Comissão de Protecção de Menores), nunca deixaria que outra criança, que não um filho meu, se colocasse nessa situação.
Para mim, são questões básicas de cortesia e de convivência cristã, iguais a dar o que de melhor temos em casa a uma visita. Os meus filhos são carne da minha carne, e amo-os mais do que tudo, mas racionalmente - ou filosoficamente - a vida deles não é mais preciosa do que a vida dos filhos dos outros. Se eu assumo a responsabilidade de tomar conta deles, nem que seja por apenas cinco minutos, isso significa que racionalmente - ou filosoficamente - eu assumo a disponibilidade de agir perante eles como se fossem meus filhos. E o facto de eles não serem meus filhos apenas aprofunda essa exigência.
Não me interessa para nada que o outro miúdo tenha um pai cuja responsabilidade é tomar conta dele. Naquele momento o pai dele não está ali, e portanto sou eu que assumo essa responsabilidade. E da mesma forma que eu estou disponível para colocar o bem-estar daquela criança à frente da minha, também tenho de estar teoricamente disponível para colocar o bem-estar daquela criança à frente da do meu filho, que é carne da minha carne e meu dependente.
Talvez esteja aqui a chave da diferença em relação à tolerância à palmada e a tantas questões sobre educação. A Helena vê o filho como um outro à nossa responsabilidade, eu vejo um filho como algo meu em processo de independência. Tão meu que até tem direito a ficar com a pior cadeira - a mesma que eu tomaria para mim.