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Vamos então às prometidas respostas a alguns leitores, após os meus dois posts sobre a educação para o desprazer e a paternidade recalcada. O problema deste blogue ter excelentes leitores - como diria um treinador de futebol, são bons problemas - é que de vez em quando há gente esperta que levanta o dedo para apontar contradições no nosso discurso. Portanto, comecemos com o caso do Anónimo de 26.04.2014 às 18:50, que escreve o seguinte:
A objecção é mais do que justa, e é absolutamente verdade que "ainda é mais tabu falar de como ser mãe também tem os seus dias maus". Eu sou um pai queixinhas de barriga cheia, porque vivendo ainda nós numa sociedade muito machista, um pai cansar-se de ser pai até é "giro", no sentido em que, pelo menos, está a falar da família, e se está a falar da família é porque se preocupa com ela. Não há maneira de uma mulher se escapar socialmente com este argumento tão básico. Nós, homens, sim.
É por isso, aliás, que eu me esforço tantas vezes por explicar que quando digo que acho que sou um pai com inúmeras limitações e não sou exemplo para ninguém não estou em modo fishing for compliments - é exactamente isso que sou e que penso de mim próprio. Não imaginam a quantidade de gente que insiste em me ver com os tais óculos cor-de-rosa mesmo quando digo coisas como "não acho graça nenhuma a bebés".
Mal digo isto, a tendência maternal do público feminino é acrescentar logo de seguida: "Ah, ele é tão fofinho [sou fofinho só porque estou a falar da família, note-se], é óbvio que está a brincar". E eu: "Não, não estou a brincar, caraças! Não gosto mesmo!" Gosto muito de crianças mas não acho piada nenhuma a bebés. Claro que os trato bem, faço cutchi-cutchi, mudo as fraldes, dou biberom, brinco com eles e gosto (imenso) de os ver a dormir, mas na lista de coisas com piada os bebés ocupam, literalmente, o lugar número 56 393 764.
Dito isto - e utilizando a clássica estrutura retórica de dar razão aos argumentos do interlocutor para depois não sairmos do lugar onde estávamos -, eu, ainda assim, mantenho-me fiel ao que disse: nunca vi a Teresa cansada do seu papel de mãe. O que é muito, muito diferente de nunca ter visto a Teresa cansada, até porque seria difícil, já que diariamente não vejo eu outra coisa.
Uma coisa é estar cansado. Outra coisa é estar cansado de se ser pai ou de se ser mãe. Eu estou frequentemente não só cansado como cansado de ser pai (acumulo, portanto, já que estão longe de ser actividades incompatíveis). A Teresa, não. Ela está frequentemente cansada, mas nunca de ser mãe. E se ela por acaso vier para aqui desmentir-me, e disser que sim, que de vez em quando acontece, eu garanto que só se for um cansaço espitirual, porque na prática não se vê nada.
Claro que ela também perde de vez em quando a paciência com os miúdos, mas não é a isso que eu chamo "cansaço de ser mãe/pai". Há vários níveis nisto. Quando eu coloquei neste blogue "A Canção Desnaturada" do Chico Buarque foi para fazer implodir qualquer réstia de politicamente correcto na relação pai/filho. Este tema - que está incluído numa opereta, e que tem, portanto, uma justificação dramática: trata-se de uma mulher jovem, mas adulta, que desobedece a um pai autoritário - não é sobre o cansaço de ser pai. É muito além disso - é raiva de ser pai. Isso eu nunca senti, graças a Deus, e penso que só sentirá quem concluir (um dia, mais tarde) que um filho cresceu para ser tudo aquilo que nós queríamos que ele não fosse.
Mas cansaço de ser pai, isso sim, sinto muitas vezes, daí a música me tocar tanto, e de ressoarem dentro de mim versos tão poderosos quanto:
Se fosse permitido
Eu revertia o tempo
Para viver a tempo
De poder (...)
Recuperar as noites (...)
Que atravessei em claro
Ignorar teu choro
E só cuidar de mim
Ui, quantas vezes senti isto em noites de desespero, naquele pára-arranca do sono quando os miúdos são bebés e não dormem de forma nenhuma? E o desejo de "só cuidar de mim"? Bem, com quatro filhos isso acontece-me para aí dia sim, dia não.
A excelentíssima esposa, contudo, é muito diferente de mim, e, sobretudo, muito mais generosa. Ela tem os filhos agarrados à pele, e acho que essa é uma das muitas razões pelas quais eu a admiro. E também pelas quais eu me irrito tanto com ela quando desespero por um fim-de-semana a sós, umas mini-férias a dois, três ou quatro dias de namoro ou de simples solidão, e esses dias tardam porque ela não quer sobrecarregar a família, porque há actividades extra-curriculares, por isto ou por aquilo.
Acho que a maior parte das mulheres são mais como eu do que como a Teresa; mas se eu acho efectivamente que ela é assim não lhe vou fazer aquilo que critico nos outros e inventar-lhe estados de espírito que ela não tem, para estarem conformes ao papel socialmente (ou até política-incorrectamente) aprovado.
Não é que a excelentíssima esposa tenha uma visão cor-de-rosa da maternidade. Mas ela transporta consigo os genes das antigas matriarcas, e eu sei que continuará a ser assim quando vierem os netos e, com sorte, os bisnetos, casa cheia aos fins-de-semana e eu a mandar vir com toda a gente por não conseguir ler em paz.
Portanto, e em resumo, a "incongruência" de que o/a anónimo/a me acusa é a incongruência própria de eu ser profundamente diferente da minha excelentíssima esposa neste aspecto das nossas vidas. A Teresa, para regressar ao título do post, sabe lidar de forma muito mais capaz do que eu com o desprazer, é uma especialidade na qual se doutorou há muitos anos - e, portanto, consegue assimilá-lo de forma a que o desprazer não seja assim tão desprazenteiro. Eu não. Eu preciso mesmo de me educar para ele, preparar-me para ele, aprender com ele.
Faço-me entender ou este post já saltou a barreira de senilidade psicanalítica?
Eu agora não tenho tempo para responder a alguns comentários ao último post - fica prometido para amanhã -, mas para quem ficou muito horrorizado com a minha frase
A paternidade, felizmente, tem muitos momentos de prazer, mas até certa idade, se eu me puser a fazer as contas, o saldo é francamente negativo.
deixo aqui uma das canções de Chico Buarque que mais me comovem e tocam, num dos vários momentos de génio da genial Ópera do Malandro. Chama-se "Uma Canção Desnaturada", ou a extraordinária arte de um progenitor amaldiçoar um filho. Dor, horror, amor - tudo junto e a rimar, como na vida. Podem chorar, que eu choro de vez em quando:
Eis a maravilhosa letra:
Por que creceste, curuminha
Assim depressa, estabanada
Saíste maquiada
Dentro do meu vestido
Se fosse permitido
Eu revertia o tempo
Para reviver a tempo
De poder
Te ver as pernas bambas, curuminha
Batendo com a moleira
Te emporcalhando inteira
E eu te negar meu colo
Recuperar as noites, curuminha
Que atravessei em claro
Ignorar teu choro
E só cuidar de mim
Deixar-te arder em febre, curuminha
Cinquenta graus, tossir, bater o queixo
Vestir-te com desleixo
Tratar uma ama-seca
Quebrar tua boneca, curuminha
Raspar os teus cabelos
E ir te exibindo pelos
Botequins
Tornar azeite o leite
Do peito que mirraste
No chão que engatinhaste, salpicar
Mil cacos de vidro
Pelo cordão perdido
Te recolher pra sempre
À escuridão do ventre, curuminha
De onde não deverias
Nunca ter saído
A citação que referi no post anterior, referente ao novo livro de Gonçalo M. Tavares, é uma nota que acompanha uma sequência de texto onde o autor reflecte sobre amor, identidade e aquilo a que chama "unidade no sofrimento":
Este dói-me a dor do outro é realmente o ponto de união mais forte entre dois organismos e, nesse sentido, o ponto de dissolução da identidade.
Escreveu Sylvia Plath:
"O teu corpo
Magoa-me como o mundo magoa Deus."
(...)
A dor, de facto, como o mais relevante.
O amor será assim a disposição para ser, se necessário, ladrão da dor do outro.
Esta passagem, descoberta ao acaso, numa abertura aleatória do livro (coisa que Gonçalo M. Tavares aconselha a fazer na leitura de Atlas do Corpo e da Imaginação), é muito importante para mim, pela razão porque tantos livros são importantes para nós: não porque nos ensinem coisas novas, mas porque nos confirmam o que já sabemos.
E neste caso em particular, a minha identificação resume-se a uma velha frase: "come what may". Quando eu e a Teresa nos casámos, em Abril de 2002, o filme Moulin Rouge!, de Baz Luhrmann, estava no pico da sua popularidade. Nós já tínhamos gostado muito de Romeu+Julieta, e o musical feérico, excessivo, deslumbrado e assolapado que era Moulin Rouge!, história desvairada de amour fou entre um jovem sonhador e uma cortesã na Paris de 1900, não poderia senão tocar profundamente dois jovens apaixonados, como eu e a soon-to-be-excelentíssima esposa.
E então decidimos não só que as nossas alianças de casamento haveriam de ser parecidas com aquelas que Claire Danes e Leonardo DiCaprio trocam em Romeu+Julieta, mas também que elas teriam gravado no seu interior, em vez de nomes ou de datas, simplesmente a expressão "come what may", uma das canções centrais de Moulin Rouge!.
É bonito, portanto, ver confirmada na passagem de Gonçalo M. Tavares aquilo que dois jovens, já não tão imberbes assim, intuíram em 2002: que o segredo do amor não está na disponibilidade para gerir a alegria, actividade ao alcance de qualquer um, mas na disponibilidade para gerir, sempre que necessário, a dor e o sofrimento. Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, até ao fim das nossas vidas. Isto não são juras de felicidade eterna - são juras de perseverança eterna.
Come what may. Venha o que vier.
Abro ao acaso (página 141) o novo livro de Gonçalo M. Tavares, Atlas do Corpo e da Imaginação, e o meu olhar, a expensas próprias, dirige-se para a nota de rodapé 291. É uma frase retirada do Livro do Amigo e do Amado, de Ramon Llull (poeta, filósofo e missionário catalão, que viveu nos séculos XIII e XIV, e que por ser tão antigo e tão beato teve direito ao aportuguesamento do nome, Raimundo Lúlio):
- Diz-me amigo - disse o amado - terás paciência se eu duplicar os teus sofrimentos?
- Sim, desde que me dupliques os teus amores.
E é isto. Há dias que se ganham assim, apenas com uma breve citação, logo pela manhã.