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Quatro pétalas, 40 anos

por João Miguel Tavares, em 29.04.15

Há três dias que durmo, pela primeira vez na minha vida, com uma quarentona. Tem sido uma experiência muito agradável.

Teresa 40 anos - Cópia.JPG

Esta senhora aqui em cima fez 40 anos no domingo, mas por causa deste senhor aqui em baixo, passámos o dia a celebrar um baptizado, em vez de termos passado o dia a celebrar um aniversário. 

 

O baptizado foi óptimo e a festa que se lhe seguiu também, mas eu não concordei com a opção da Teresa. Só que, como por esta altura já bem sabe toda a gente que passa pelo PD4, eu não mando nada. Os meus protestos por o baptizado, ao contrário dos anos, poder perfeitamente ser noutro dia foram por água abaixo, com o argumento tereséfilo de que o Tomás faz parte de um grupo coeso de catequese, a paróquia marcou o baptizado para aquele dia juntamente com outras crianças da idade dele, e isso era mais importante do que a festa dos 40 anos. 

 

Eu percebo, discordando. Passámos os meus 40 anos em Nova Iorque, foram uns dias inesquecíveis, com 40 velas apagadas num maravilhoso muffin de chocolate. Para os seus 40, a Teresa tinha escolhido viajar em família (vá lá saber-se porquê, ela prefere andar com os miúdos atrás em vez de viajar só comigo) e tínhamos já combinado passar uns cinco ou seis dias nos Açores, aproveitando os belos preços das low cost (com um rebanho de seis não pode ser de outra forma). Mas com a marcação do baptizado para 26 de Abril foi tudo por água abaixo.

 

Ainda pensei em fazer uma coisa bué romântica, tipo arrancá-la no domingo à noite e viajar para qualquer parte, mas a nossa actual logística doméstica e profissional é tão complicada que assassina qualquer romantismo. Mais do que isso: continuo a ser demasiado tímido para impor a minha presença à minha própria mulher. Fazendo ela tanta questão de ir com as crianças, não ia estar a armar-me em Don Juan, já que era impossível arrastar os miúdos em semana de escola. Donde, o romantismo foi obrigado a ficar em suspenso até aos meses do Verão. Esperemos, pelo menos, que dê para nos vingarmos aí. Acho os 40 demasiado importantes, em termos simbólicos e psicológicos, para não serem devidamente celebrados.

 

De tudo aquilo que tinha imaginado restou o quê? Restou um anel, que eu queria muito, muito que fosse especial. Felizmente, encontrei, no meio de uma investida pelo El Corte Inglés, uma marca portuguesa de joalharia chamada Eleuterio e foi amor à primeira vista. Ignorante como sou nestas coisas, desconhecia por completo a marca, que fui googlar mal cheguei a casa. Fiquei fã para a vida: eles trabalham a filigrana em estilo déco, com uma originalidade e um requinte extraordinários, e não havia uma única peça pela qual não apetecesse partir a montra e levar para casa.

 

Além de ter colares de cair para o lado, a peça mais impressionante era um anel em ouro rosa, mas como custava a módica quantia de oito mil euros, achei que era melhor deixar para os 80 anos. É este aqui em baixo, mas garanto-vos que a imagem não faz minimamente justiça àquilo que é o anel ao vivo.

Anel Ouro Rosa Eleuterio.png

Portanto, tive de optar por uma das jóias mais modestas da marca, mas que tinha todo o simbolismo que eu desejava para esta ocasião. É um anel da linha Blossom, uma flor dourada, que na verdade eu gosto de imaginar ser um trevo de quatro folhas, para dar mais sorte: quatro pétalas, quatro filhos, quarenta anos. E 23 minúsculos diamantes, que juntos compõem a data mais importante da nossa vida em comum: 2/3, 2 de Março, o dia em que começámos a namorar, em 1992. Ou seja, há... 23 anos.

 

O 2 de Março é também o dia em que nasceram os nossos dois rapazes, o Tomás (2 de Março de 2006) e o Gui (2 de Março de 2008). Bonitos mistérios. Vão-se as viagens, ficam os anéis: os designers e artesãos da Eleuterio não fazem ideia, mas este anel foi obviamente feito a pensar na Teresa e na nossa relação. 

Blossom.png

Eu gosto muito destes jogos simbólicos, e do esforço de corporizar ideias e sentimentos. E por isso gosto tanto desta jóia, e de tudo aquilo que ela representa: a enorme sorte de ter encontrado há 23 anos a mulher da minha vida. A minha Teresa. A minha quarentona.

Anel dos 40.JPG

 

publicado às 13:52


Orgulho na derrota

por João Miguel Tavares, em 01.10.14

A excelentíssima esposa deu-me ontem uma sova argumentativa e estou há 24 horas a saborear esse feito. Como eu ontem disse à Maria João Marques, que no Facebook me atirou com um

 

Foste arrumado, João Miguel :-) (a Teresa também escreve muito bem).

 

a verdade é que nós nunca perdemos quando somos derrotados pelas nossas mulheres. A razão é simpes: se ganhamos a discussão, ganhamos a discussão e somos muito espertos; se perdemos a discussão, podemos sempre dizer com justíssimo orgulho: "Estão a ver esta miúda super-inteligente que me deu uma coça? Consegui que ela se casasse comigo." E somos ainda mais espertos.

 

Claro que eu continuo a achar que a miúda super-inteligente não tem nenhuma razão nesta questão - só que isso deixou de interessar. Quando a capacidade de expor a sua perspectiva é tão eficaz que os leitores consideram que ela ganhou o debate, há que sair de mansinho e saborear o facto de a ter conseguido enganar em 1992. E continuar a enganá-la, 22 anos depois.

 

 

publicado às 09:43


39 :-)

por João Miguel Tavares, em 26.04.14

Hoje é dia de festa: a excelentíssima esposa faz 39 anos. Eu podia estar aqui a dizer como ela continua magnífica e encantadora, mas como corria o risco de não acreditarem em mim, decidi recorrer aos desenhos que os nossos dois filhos mais velhos decidiram oferecer-lhe, logo ao acordar. Reparem como ela, aos 39, permanece jovem, elegante e bela. É impressionante.

 

Este é o desenho da Carolina:

 

 

E este é o do Tomás, ainda sob a influência da Revolução dos Cravos:

 

 

publicado às 11:56


Brisa suave num campo devastado

por João Miguel Tavares, em 24.01.14

Vou tentar explicar num instante, aproveitando o facto de a excelentíssima esposa estar de banco e não poder corar com os meus elogios, porque é que o comentário anterior da Ana Azevedo me toca tanto. Vocês podem querer dar-me o desconto por aquilo que eu vou dizer ser sobre a minha mulher, mas eu sei que tenho do meu lado, como testemunhas de defesa, não dezenas, mas centenas ou milhares de pessoas que já precisaram da sua ajuda e a quem ela acompanhou nos momentos mais emocionalmente difíceis das suas vidas; aqueles momentos de que a Ana fala e sobre os quais sente tanta necessidade de aprender.

 

Essa é simultaneamente a bênção e a maldição de um médico - viver uma vida de uma intensidade desmedida, ao lado de milhares de doentes que entregam tudo o que têm nas suas mãos. Então quando se trata de uma médica como a Teresa, especialista em hematologia oncológica, que durante muitos anos trabalhou no IPO de Lisboa, esse tudo é mesmo tudo, é habitar um forte isolado numa fronteira hostil, que a morte tenta diariamente assaltar. Não admira que tantos médicos sejam escritores - é uma profissão que pode conferir uma sabedoria imensa a quem estiver disponível para a abraçar de corpo e alma, como a Ana parece estar. Invejo-vos por isso.

 

E a verdade é que a Teresa nasceu para ser médica. Aliás, ela queria ser médica desde que se lembra, por razões que ela vos contará se quiser, e, de facto, mesmo nas alturas em que está mais desiludida com a sua profissão, nunca a imaginei a ser outra coisa. Ela às vezes quer imaginar-se outra coisa, mas no que depender de mim, nunca quererei que se imagine. Por uma razão simples: ela é uma médica extraordinária não por causa do tal "conhecimento médico-científico-orgânico" de que a Ana fala - embora seja impossível alguém ser bom médico sem conhecimentos sólidos na sua área -, mas exactamente por aquilo que a Ana procura e que na Teresa - sorte imensa a dela - é tão natural: saber "o que fazer ou dizer a alguém que chora copiosamente à cabeceira do pai que está a morrer".

 

Nesse sentido, a Ana veio bater a uma porta mais certa do que imagina: naquilo a que tipicamente se chama relação médico-doente, a Teresa tem um talento fora do comum. Eu já insisti com ela muitas vezes para se especializar nisso, para sistematizar isso, para escrever um livro sobre isso, mas ela chuta sempre para canto, dizendo que há óptimos livros sobre o assunto. Nunca me convenceu. Acho simplesmente que, como aquilo lhe sai de forma tão natural, seria como pedir para explicar aos outros aquilo que é óbvio para ela. E no entanto, como a Ana aqui mostrou tão bem, o dom da Teresa não é nada óbvio. E eu que o diga, que fico invariavelmente de boca aberta quando a vejo saber sempre, mas sempre, o que dizer, o que fazer, como tocar (e como o toque é importante!), como estar perante pessoas confrontadas com as situações mais brutais das suas vidas. Seja a sua própria morte, seja a morte das pessoas que mais amam.

 

Acho que seria capaz de ficar aqui a elaborar sobre isto até o Sol nascer. Mas tenho mais coisas para fazer e a Teresa pode ficar embaraçada a tal ponto que me vá querer bater por estar a dizer tudo isto (se eu não postar nos próximos três dias, já sabem: foi ela que me partiu os dedinhos ao chegar a casa). Até porque sendo um dom que a Teresa sabe que tem, e sabe que é raro, e sabe que é valioso, ela parece nunca o valorizar tanto quanto devia - ou então, talvez essa desvalorização seja parte integrante do próprio dom. Não faço ideia. Mas que é um enorme talento, é, e é por mim tanto mais admirado quanto eu sou o seu exacto oposto: muito melhor à distância do que perto; muito melhor a escrever sobre isto num blogue do que a falar disto ao lado de alguém que precise. A mim falta-me absolutamente esse dom.

 

Foi isso que eu tentei explicar num texto que escrevi em Março de 2011, para a página Os Homens Precisam de Mimo do Correio da Manhã, poucos dias após a morte de um dos doentes que mais marcaram a Teresa. O texto chama-se apenas "Filipe", e apetece-me deixá-lo agora aqui, como prenda para a Ana Azevedo, enquanto a Teresa está a trabalhar longe e a fazer aquilo para que nasceu.

 

FILIPE

 

Quando era pequeno, as minhas tias-avós achavam-me o miúdo mais antipático do mundo, porque eu nem um “bom dia” lhes dirigia. O meu irmão, que é quatro anos mais velho e sempre foi um rapaz falador e civilizado, tinha de me enfiar cotoveladas e rosnar baixinho um “diz olá à tia” para que a minha língua descolasse, e assim demonstrar à família que não tinha saído de uma gruta pré-histórica anterior à invenção da linguagem. Ainda hoje ele goza com essa minha absoluta inépcia social, que a idade foi polindo, mas sem curar.

 

Acreditem ou não, estou mais à vontade num anfiteatro a falar para 150 pessoas do que num bar a conversar com alguém que acabei de conhecer. Já a minha excelentíssima esposa é o contrário. Se tem de falar para um grupo de pessoas que está com os olhos espetados nela, parece Colin Firth no ‘Discurso do Rei’, com as palavras numa longa fila dentro da boca, à espera de um semáforo verde que parece não chegar. E no entanto, ela, que é médica, é um verdadeiro génio no um para um: nunca vi ninguém com tamanha capacidade para confortar as outras pessoas, saber ouvi-las e encontrar palavras que curam e acalmam.

 

Não vos vou contar quem era o Filipe porque eu próprio, apesar de lhe ter emprestado a primeira série do ‘Dexter’ e de ter feito alguns desvios nocturnos para lhe comprar pastéis de Belém, nunca cheguei a conhecê-lo pessoalmente. Apenas através das conversas da Teresa. Da preocupação da Teresa. Da sua angústia. E finalmente, da sua imensa tristeza. O Filipe morreu há dez dias no IPO, aos 20 anos de idade. No velório, a Teresa escutava, abraçava, consolava, como a brisa suave de que a Bíblia fala, num campo devastado. É um dom extraordinário que ela tem. Já eu, regressei à infância: estupidamente mudo, incapaz de dizer o que quer que fosse àqueles pais. Tenho 37 anos e ainda preciso das cotoveladas do meu irmão.

 

publicado às 22:45



Os livros do pai


Onde o pai fala de assuntos sérios



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