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Enquanto eu andava a escrever estas coisas sobre o amor e as relações de longo prazo, recebi na minha caixa do correio o anúncio do lançamento pela Tinta-da-China de mais um livro de Jan Morris, o segundo após Veneza, na colecção de Viagens dirigida pelo Carlos Vaz Marques.
A mudança de sexo de Jan Morris, em 1972, aos 46 anos, já seria só por si uma história extraordinária. Ocorrida em Marrocos, pelas mãos dos ginecologista francês Georges Burou, verdadeiro pioneiro neste tipo de intervenções numa época em que elas ainda não eram permitidas na Europa, a odisseia da sua transexualidade foi contada pelo próprio dois anos depois, numa obra chamada Conundrum. O livro começa assim:
I was three or perhaps four years old when I realized that I had been born into the wrong body, and should really be a girl. I remember the moment well, and it is the earliest memory of my life.
Apesar de esta sensação tão forte durante a mais tenra infância, Morris continuou à procura da sua identidade, ao mesmo tempo que se afirmava como jornalista, viajante e escritor. Foi ele o correspondente que acompanhou Edmund Hillary na primeira subida bem sucedida ao Evereste, em 1953.
Mas o que interessa realmente para aqui foi o que ele fez quatro anos antes disso, em 1949: o casamento com Elizabeth Tuckniss, com a qual teve cinco filhos (um deles morreu ainda na infância), antes de se decidir pelos tratamentos hormonais, que desembocariam na referida operação.
Eis o que espanta na relação de Morris com Tuckniss: ela resistiu a tudo, incluindo à mudança de sexo.
Embora ambos tenham sido obrigados a divorciarem-se nos anos 70, devido a questões legais - não existia ainda a possibilidade de casamentos entre dois homens ou duas mulheres -, elas permaneceram sempre juntas. E quando, em 2008, passaram a ser possíveis as uniões de facto em Inglaterra, Jan e Elizabeth voltaram novamente a unir-se aos olhos da lei.
Diz Elizabeth:
I made my marriage vows 59 years ago and still have them. We are back together again officially. After Jan had a sex change we had to divorce. So there we were. It did not make any difference to me. We still had our family. We just carried on.
Ora cá está este admirável "carried on", que num caso tão extremado quanto uma mudança de sexo, em que o marido a meio da vida se transforma em mulher, só é mesmo possível com uma quantidade avassaladora de amor - um amor que ultrapassa tudo, incluindo a implosão da identidade sexual.
O mundo, de facto, é um lugar estranho, que não pode ser reduzido à nossa caixinha de valores e de ideias feitas. Para os interessados, há mais detalhes sobre esta história aqui.